quinta-feira, 20 de novembro de 2008

MATERIAL DE APOIO - Texto


O ETHOS QUE CUIDA - Leonardo Boff

Quando amamos, cuidamos e quando cuidamos amamos. Por isso o ethos que ama se completa com o ethos que cuida. O "cuidado" constitui a categoria central do novo paradigma de civilização que forceja por emergir em todas as partes do mundo. A falta de cuidado no trato da natureza e dos recursos escassos, a ausência de cuidado com referência ao poder da tecnociência que construiu armas de destruição em massa e de devastação da biosfera e da própria sobrevivência da espécie humana, nos está levando a um impasse sem precedentes. Ou cuidamos ou pereceremos. O cuidado assume uma dupla função: de prevenção a danos futuros e de regeneração de dados passados. O cuidado possui esse condão: reforçar a vida, zelar pelas condições físico-químicas, ecológicas, sociais e espirituais que permitem a reprodução da vida e de sua ulterior evolução. O correspondente ao cuidado em termos políticos é a "sustentabilidade" que visa encontrar o justo equilíbrio entre o benefício racional das virtualidades da Terra e sua preservação para nós e as gerações futuras. Talvez aduzindo a fábula do cuidado, conservada por Higino (+17,d.C.), bibliotecário de César Augusto, entendamos melhor o significado do ethos que cuida.

"Certo dia, Cuidado tomou um pedaço de barro e moldou-o na forma do ser humano. Nisso apareceu Júpiter e, a pedido de Cuidado, insuflou-lhe espírito. Cuidado quis dar-lhe um nome, mas Júpiter lho proibiu, querendo ele impôr o nome. Começou uma discussão entre ambos. Nisso apareceu a Terra alegando que o barro é parte de seu corpo e, que por isso, tinha o direito de escolher um nome. Gerou-se uma discussão generalizada e sem solução. Então todos aceitaram chamar Saturno, o velho deus ancestral, para ser o árbitro. Este tomou a seguinte sentença, considerada justa: Você, Júpiter, deu-lhe o espírito, receberá o espírito de volta quando essa criatura morrer. Você, Terra, que lhe forneceu o corpo, receberá o corpo de volta, quando esta criatura morrer.E você, Cuidado, que foi o primeiro a moldar a criatura, acompanha-la-á, por todo o tempo em que viver. E como vocês não chegaram a nenhum consenso sobre o nome, decido eu: chamar-se-á homem que vem de humus que significa terra fértil".

Essa fábula está cheia de lições. O cuidado é anterior ao espírito infundido por Júpiter e anterior ao corpo emprestado pela Terra. A concepção corpo-espírito não é, portanto, originária. Originário é o cuidado "que foi o primeiro a moldar o ser humano". O Cuidado o fez com "cuidado", zelo e devoção, portanto, com uma atitude amorosa. Ele é, anterior, o a priori ontológico que permite o ser humano surgir. Essas dimensões entram na constituição do ser humano. Sem elas não é humano. Por isso se diz que o "cuidado acompanhará o ser humano por todo o tempo em que viver". Tudo que fizer com cuidado será bem feito.

O ethos que cuida e ama é terapêutico e libertador. Sana chagas, desanuvia o futuro e cria esperança. Com razão diz o psicanalista Rollo May:"na atual confusão de episódios racionalistas e técnicos, perdemos de vista o ser humano. Devemos voltar humildemente ao simples cuidado. É o mito do cuidado, e somente ele que nos permite resistir ao cinismo e à apatia, doenças psicológicas de nosso tempo".

FONTE: www.leonardoboff.com

Leonardo Boff
Teólogo da Libertação, escritor, professor e conferencista, doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique (Alemanha), professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior. Autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.

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